Alfredo Bessow

Alfredo Bessow é um jornalista, radialista, influenciador e analista político brasileiro com mais de 40 anos de experiência.

Sociedade luta para não ser um brinquedo descartável nas mãos da mídia

por | 26/12/2019 | 0 Comentários

A desconstrução da personalidade do brasileiro, do próprio apego aos seus valores e seus referenciais éticos, foi algo imposto “no grito” e na execração pública de quem, por ventura, ousasse pensar diferente

Minha avó materna era germanicamente negativa. Adorável em
todos os sentidos, capaz de fazer cucas e doces com rara maestria, tinha como
marca central de sua personalidade a incapacidade de achar algo 100% positivo.
Em certo sentido, minha avó antecipou o jornalismo dos dias atuais, porque em
toda frase ou conversa dela, sempre tinha um “aber” (mas em alemão) para frear
a felicidade.

A diferença entre o “aber” da minha avó Frida e do jornalismo
militante dos dias atuais é que ela tinha um alcance limitado e todos nós na
família tratávamos mais como parte da personalidade dela do que como
estratégia. A “necessidade” estratégica e de confrontação ideológica torna o
jornalismo brasileiro refém não apenas do “mas” e sim principalmente da
polarização que se incrustou na sociedade brasileira quando a mídia comprou e
disseminou o discurso petista que foi sendo construído desde o começo dos anos
80 do “nós contra eles”.

A polarização que hoje vivemos não é fruto do acaso, mas
surgiu como parte de uma linha de atuação que ganhou força com o fim dos
governos militares e o advento da Nova (velha) República. Os meios de
comunicação em lugar de autocrítica, optaram pelo simplismo de entrar na nova
onda. Lembro dos motes das campanhas eleitorais em sindicatos onde a palavra de
ordem era “fora pelegada” e os novos dirigentes anunciavam aos quatro ventos
que eram contra a unicidade sindical e contra o imposto sindical – dizendo que
eram instrumentos do estado fascista para controlar os sindicatos.

Os anos foram passando e com o passar do tempo, quem se
anunciou como renovação da mentalidade retrógrada dos dirigentes sindicais
acabou incorporando as práticas que antes abominavam. As esquerdas sempre
defenderam o fim da unicidade sindical como forma de criar uma proliferação de
sindicatos e terem ganho em escala.

A chegada de Lula e sua troupe de saltimbancos ao poder
central jogou na vala do esquecimento antigas bandeiras e ferrenhos desafetos
foram cooptados para compartilharem o grande assalto aos cofres públicos e aos
recursos que tramitam sob milhares de rubricas dentro da estrutura de poder.
Batedores de carteira com vários processos criminais por conta de estripulias
que vão de mau uso de recursos públicos, passando por apropriação indébita e
descambando até em crimes como o de formação de quadrilha, subitamente deixaram
de ser adversários éticos e passaram a ser aliados relevantes quando a horda
petista descobriu que o poder é capaz de fazer com que desafetos engulam o que
disseram apenas para participar do banquete e se refastelarem nos prazeres nas
benesses de cargos.

Observe que o PT trouxe para junto de si o que havia e há de
mais corrupto na vida política nacional e nem por isso os petistas e seus
aliados sentiram qualquer tipo de constrangimento de viver e conviver com
batedores e careira em vários níveis. E os compromissos de oxigenar a estrutura
e o modelo sindical nunca foram além de balela e tudo não apenas continuou como
antes, mas melhorou para as sindicais graças a novos modelos fascistas de
fortalecimento da estrutura, fazendo com que entidades passassem a se parecer
mais com franquias criminosas do que estruturas a serviço da classe
trabalhadora.

Com o discurso conservador sob pressão e até perseguidos,
lembrando em parte os preceitos que a alemã Elisabeth Noelle-Neumann em 1977
tipificou como sendo a “Espiral do Silêncio”. Como não tinham uma maioria para
se impor, transformaram as minorias em emissoras de ruído – dando a elas um
poder e uma relevância muito maior do que realmente tinham.

Ou seja: a desconstrução da personalidade do brasileiro, do
próprio apego aos seus valores e seus referenciais éticos, foi algo imposto “no
grito” e na execração pública de quem, por ventura, ousasse pensar diferente. O
aprofundamento dessa estratégia chegou a um ponto de saturação quando as
próprias pessoas começaram a questionar o que fora feito dos seus valores, quem
havia se adonado deles e como os grupos de manipulação de massa conseguiram
transformar conceitos aviltantes para a condição humana em algo não só
tolerável, mas obrigatoriamente incensado.

Houve um estágio de purgação e de caçada onde ser contra o
aborto, contra a pedofilia e contra o incesto, contra a liberação das drogas,
contra a monogamia, equivalia a necessidade de degredo e expiação em espaços
públicos. Em lugar da fogueira da Inquisição, o linchamento moral acontecia via
imprensa – que deixou de lado o compromisso de informar e julgou que era também
seu dever julgar e determinar a sentença.

O processo de ruptura que era incipiente entre 2004 e 2012,
cresceu de forma exponencial com as manifestações de 2013 – que foram uma
retomada do espaço da cidadania do cidadão que vive o cotidiano das realidades
imaginárias e sofre com as agruras e os conflitos da vida real.

Esse quadro de estupor e de letargia ao qual a sociedade foi
sendo conduzido rompeu-se de forma unilateral quando essa mesma sociedade que
para muitos parecia estar dominada pelo medo e adormecida e sua capacidade de
reagir optou por eleger Bolsonaro em 2018. Se os alemães usam a expressão weltanschauung
para definir um conjunto ordenado de valores, crenças, impressões, sentimentos
e concepções de natureza intuitiva, anteriores à reflexão, a respeito da época
ou do mundo em que se vive, os brasileiros tiveram que fazer uma imersão em sua
psique para resgatar seus próprios valores e terem de volta os parâmetros e as
referências nas quais sempre acreditaram e que haviam sido subtraídas de modo
ardiloso ao longo do tempo.

Remando contra a maré dos novos tempos de brasilidade, a
mídia tradicional preferiu ficar vincada em um tempo no qual era a referência,
sem se aperceber de que o poder que ela pensava que detinha era apenas uma
casca e que se trincou quando o humano se agigantou dentro de corpos, para
emergir um novo Brasil que não depende da autorização dela (mídia) para viver,
para sonhar e para construir o futuro.

Se o “aber” da minha avó ainda hoje me acompanha com a
saudade que se tem de pessoas que fazem parte de nossa história, o apego da
mídia ao “mas” me soa muito mais como o canto do cisne de quem já está morto e
teima em espargir seu fétido rancor e a maledicência de sua ira em sua jornada
rumo à insignificância.

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